Todo mundo já ouviu falar da necessidade de termos foco no cliente e de oferecermos uma experiência positiva em todas as interações de sua jornada com a empresa. Pois bem, a mentalidade de ecossistema é um conceito que deriva do foco no cliente, mas costumo dizer que é o “foco no cliente turbinado” ou “foco no cliente 2.0”.
MENTALIDADE DE ECOSSISTEMA
Mentalidade de ecossistema significa tomar decisões que criam valor para todos os atores de uma plataforma.
Esse princípio eu aprendi no Gympass. Ele foi tão importante para a empresa que acabou se tornando um dos valores corporativos. No site do Gympass há a seguinte descrição para este termo:
MENTALIDADE DE ECOSSISTEMA
Tomamos decisões que criam valor para o nosso ecossistema Gympass e nos ajudam a alcançar nossa missão.
A grande maioria das empresas tem mais de um tipo de cliente. No Gympass, tínhamos as empresas e seus departamentos de RH, seus funcionários e as academias. Na Locaweb, tínhamos donos de pequenos negócios e seus desenvolvedores de sites. Na Conta Azul, eram os donos de pequenos negócios e seus contadores. Na Lopes, tínhamos a pessoa que está comprando imóvel, a pessoa que está vendendo o imóvel e a corretora, que é a pessoa que está intermediando essa transação de compra e venda.
Quando falo que a empresa precisa ter mentalidade de ecossistema, ela precisa não só focar no cliente, mas entender que ela:
Por isso digo que a mentalidade de ecossistema é o “foco no cliente turbinado”! Na minha opinião, todas as empresas devem ter esse princípio. Muitas vezes me deparei com CEOs e heads de produto que afirmavam que faziam tudo pelo cliente, que a empresa inteira era voltada ao cliente. Contudo, quando eu perguntava mais sobre esse tema, eu acabava descobrindo que o cliente a que eles se referiam ou era aquele que paga pelos serviços ou era o consumidor final, e os outros interlocutores eram tratados apenas como “mal necessário”.
Quando me juntei ao Gympass em 2018, esse valor ainda não fazia parte da cultura organizacional da empresa, e havia certos desbalanços de foco, energia e recursos. Nessa época, o Gympass já contava com 800 funcionários, mas o time de desenvolvimento de produto, incluindo gestoras de produto, designers e engenheiras, tinha apenas 30 pessoas. Essas pessoas estavam organizadas em quatro times, sendo três focados no usuário final e um focado em academias para fazer as integrações entre seus sistemas e o sistema do Gympass. Quando havia alguma necessidade de desenvolvimento de produto para o RH das empresas, tirávamos uma ou duas pessoas dos times focados no usuário final e as alocávamos para atender essa necessidade específica e, depois, elas voltavam para o seu time original. Havia claramente um desbalanço entre a energia de desenvolvimento de produto para o usuário final, academias e RHs. Resolvemos isso criando um time de desenvolvimento de produto focado no RH das empresas e reforçando o time de desenvolvimento de produto para academias.
Quando eu entrei na Lopes, nosso marketing era 100% direcionado para gerar mais leads, mais pessoas interessadas em comprar ou alugar imóveis. Contudo, ao vermos a Lopes como um ecossistema que, além de interagir com quem está comprando um imóvel, interage com quem está vendendo imóvel (incorporadoras e proprietários) e com quem faz a intermediação (franquias e seus corretores), percebemos que precisamos dividir nossos esforços de marketing para falar com todos esses públicos.
O próximo exemplo que darei sobre mentalidade de ecossistema é a implementação do produto de aulas ao vivo que o Gympass criou durante a crise da COVID-19.
Durante a pandemia da COVID-19, diversificamos – e digitalizamos – nosso portfólio de produtos em tempo recorde. Em menos de um mês, passamos de um produto off-line (acesso a academias e estúdios) para quatro produtos, três deles totalmente digitais:
Como comentei no capítulo Entregas rápidas e frequentes, o Gympass Wellness foi uma ferramenta importantíssima para conseguirmos atender aos problemas e necessidades dos usuários e de nossos clientes corporativos durante a crise. Acredito que, se não tivéssemos esse produto, o Gympass teria sofrido muito com o cancelamento dos clientes. O Gympass Wellness foi nosso primeiro produto 100% digital.
Com o Gympass Wellness, fomos capazes de atender às necessidades de nossos clientes corporativos e de seus funcionários. E as academias? Ao serem fechadas, estavam perdendo receita. De um lado, seus clientes diretos, que pagam mensalidade, não as visitavam mais, então esses usuários regulares das academias estavam propensos a cancelar suas mensalidades; por outro lado, aqueles usuários de academia que costumavam frequentá-las usando o Gympass também não iriam mais à academia enquanto o lockdown estivesse vigente, o que também causaria uma perda de receita para as academias.
Como nossos clientes corporativos e seus funcionários estavam bem atendidos pelo Gympass Wellness, poderíamos ter “cruzado os braços” para a situação das academias. Afinal, elas eram custo para o Gympass e aquele era um momento em que a contenção de custos era muito importante.
Contudo, utilizando da mentalidade de ecossistema, entendemos que não poderíamos deixar as academias sem apoio. Eventualmente a crise passaria, e as academias eram e continuariam sendo essenciais para o modelo de negócio do Gympass. Em função disso, para ajudar as academias parceiras, decidimos e implementamos em tempo recorde duas soluções:
Por meio desse sistema de Live Classes, pagávamos às academias por cada pessoa que assistisse à aula que fosse transmitida, gerando assim uma possibilidade de receita para as academias mesmo com as portas fechadas devido às restrições da pandemia. Além disso, demos a elas a oportunidade de terem acesso a potenciais alunos que não estivessem na mesma cidade. Uma vez que as aulas eram transmitidas ao vivo pela internet, qualquer pessoa de qualquer lugar poderia participar.
Com o Live Classes, criamos o nosso segundo produto digital.
O Live Classes fornecia uma plataforma que chamávamos de 1:N , o que significa que um instrutor poderia fornecer orientação de atividade física para N usuários. Logo percebemos que poderíamos criar um outro produto em cima dessa estrutura que havíamos desenvolvido para o Live Classes. Além de oferecer orientação de atividade física no modelo 1:N , poderíamos também oferecer no modelo de 1:1 , que caracteriza o trabalho típico de um personal trainer.
Por se tratar de um modelo mais personalizado, optamos por oferecer essa opção para os planos de nível superior do Gympass. Além disso, dávamos a oportunidade para que profissionais de educação física pudessem ter uma receita extra. Com a criação desse novo produto, colocamos em nosso portfólio nosso terceiro produto digital, que chamamos de Personal Trainers.
Se não fosse pela nossa mentalidade de ecossistema, não teríamos criado nem o Live Classes nem o Personal Trainers. Fomos capazes de entender que tínhamos diferentes tipos de clientes (empresas, seus funcionários e academias parceiras) — e entender que, para cada um desses tipos de clientes, entregávamos um valor diferente, além de compreender como cada um interage com o outro, foi a chave para conseguirmos manter nosso foco em ajudar cada um deles, mesmo durante a crise da pandemia de COVID-19.
A princípio, podemos ficar com a impressão de que a mentalidade de ecossistema só se aplica em empresas que são uma plataforma ou um marketplace, como vimos no capítulo Modelos de negócio, afinal esse tipo de negócio tem um ecossistema, normalmente com mais de um tipo de cliente, e tem interações entre os clientes.
É o caso do Gympass, descrito anteriormente. É também o caso da Lopes, no qual temos o cliente, que compra ou aluga um imóvel; a pessoa que está vendendo ou alugando o imóvel, que é a incorporadora (no caso de imóvel na planta) ou o proprietário (no caso de imóvel pronto); e a pessoa que está fazendo a intermediação, que são as pessoas corretoras e as franquias às quais elas pertencem.
Na Conta Azul, inicialmente enxergávamos nosso modelo de negócio como um SaaS (Software as a Service, ou Software como serviço), no qual vendíamos o acesso ao software de gestão financeira para pequenas empresas. Com o tempo, começamos a perceber que os contadores têm um papel importante na gestão financeira das empresas e passamos a considerá-los como parte do nosso ecossistema, inicialmente como um canal de vendas e, posteriormente, como parte integrante do que passamos a enxergar como plataforma Conta Azul, que conecta os donos das pequenas empresas ao seu contador e a tudo o que eles precisam para tocar o seu negócio. Na Conta Azul, evoluímos de uma visão de produto simples, com um único tipo de cliente, para uma visão de plataforma, com dois tipos de clientes (dono do negócio e contador) e suas interações. Nesse caso, mais uma vez a mentalidade de ecossistema é um princípio muito útil para ajudar a entender os diferentes tipos de clientes e suas relações e, consequentemente, encontrar oportunidades de potencializar essas relações.
Contudo, para certos tipos de produtos e de empresas, podemos ficar com a impressão de que a mentalidade de ecossistema não se aplica, afinal algumas empresas e produtos têm um único tipo de cliente, não um ecossistema de clientes.
Como comentei na introdução, desde meados de 2022 tenho usado minha experiência de mais 30 anos como executivo full-time na liderança de equipes de tecnologia e de desenvolvimento de produtos digitais para ajudar mais empresas e pessoas a conectarem tecnologia e negócios por meio de treinamento e consultoria em gestão de produtos e transformação digital. Essa exposição a mais empresas, pessoas, produtos e modelos de negócio tem me trazido vários aprendizados interessantes, entre eles o de que até mesmo uma empresa com um único produto e um único tipo de cliente pode se beneficiar da mentalidade de ecossistema.
Um dos meus clientes é uma empresa que faz software para gestão de cartórios. Durante a sessão de kick-off, na qual apresento os princípios da cultura digital, eu estava mostrando o conceito de mentalidade de ecossistema, mas fiz uma ressalva de que talvez para eles não fosse tão aplicável, uma vez que eles tinham somente os cartórios como clientes. Nesse momento, uma das pessoas comentou que o sistema deles ajudava seus clientes (os cartórios) a interagirem melhor com clientes que precisam de seus serviços — consequentemente, a mentalidade de ecossistema era um princípio que fazia, sim, bastante sentido para eles.
Então, mesmo uma empresa com um único produto e um único tipo de cliente pode se beneficiar do princípio da mentalidade de ecossistema, uma vez que suas clientes não vivem isoladas: elas interagem com outras pessoas e empresas, e o produto pode fazer parte dessa interação, o que mostra que temos não só um tipo de cliente, mas um ecossistema para cuidar.
Fundada em 1978 por Régis e Ghislaine Dubrule, um casal empreendedor francês recém-chegados em São Paulo, a Tok&Stok revolucionou o mercado ao introduzir o conceito de móveis prontos para entrega imediata e com design inovador. Em 2012, tornou-se parte do Grupo Carlyle e, em 2019, já contava com 54 lojas e 5 quiosques em 33 cidades por 20 estados do Brasil e no Distrito Federal, sendo eleita a empresa de varejo mais admirada do país no segmento de móveis pelo IBEVAR em 2022. Em fevereiro de 2023, a empresa enfrentava uma dívida de cerca de 600 milhões de reais e acionou a Alvarez & Marsal, uma empresa especializada em reestruturação de empresas e processos de recuperação judicial.
Entre 2020 e 2022, Victor Almaraz foi Group Product Manager na Tok&Stok, líder de produtos da comunidade de Canais B2C (canais digitais e jornada do cliente final em loja física). Até 2020, o e-commerce apresentava os produtos com dois preços: o preço casa e o preço loja. O preço casa era o preço incluindo a entrega e a montagem do móvel na casa do cliente, enquanto o preço loja, mais barato, era o preço que a cliente pagaria se ela mesma buscasse o móvel na loja, levasse para sua casa e cuidasse da montagem. Não foi feita nenhuma pesquisa com clientes para entender como eles percebiam esses dois preços. Em meados de 2020, a diretoria tomou a decisão de tirar esses dois preços, deixando apenas o equivalente ao preço loja, o mais barato, e oferecer a entrega e a montagem como serviços à parte. O principal objetivo dessa mudança era o aumento de receita, com mais clientes percebendo o valor desses serviços adicionais. Contudo, esse objetivo não foi alcançado e não havia clareza do porquê.
Ao se deparar com essa situação, Victor foi conversar com clientes que não estavam comprando o serviço adicional de montagem de móveis. Ao fazer essa pesquisa, descobriu que poderiam ser feitas algumas melhorias de usabilidade no processo de checkout, mas que teriam pouco impacto no resultado, pois a maioria dos clientes que não queriam a montagem o faziam por considerá-la um hobby ou por já terem uma pessoa montadora de confiança.
Esse estudo de caso ilustra falta de mentalidade de ecossistema, de entender o cliente, seus problemas e suas motivações. Se houvesse maior mentalidade de ecossistema, provavelmente o time não teria investido tempo nessa mudança, que acabou não gerando o resultado esperado nem para a Tok&Stok, nem para seus clientes.
Foco no cliente é um princípio muito difundido, mas que, por várias vezes, é mal interpretado. Já vi várias empresas focarem exclusivamente no cliente que paga, ou somente no consumidor final, e essa atitude gera resultados bem ruins tanto para a empresa como para os diferentes tipos de cliente, até mesmo para aquele que era o foco.
Por outro lado, cada vez mais as empresas estão inseridas em ecossistemas mais complexos, que têm dois ou mais tipos de cliente, e devemos ter atenção e foco em todos eles.
Faça uma reflexão sobre o seu negócio e mapeie quem são seus interlocutores. Você só tem mesmo um único tipo de cliente, ou é mais de um tipo de cliente? Como sua empresa interage com cada tipo diferente de cliente? Vocês estão dando a devida atenção, foco, energia e recursos para cada um deles?
Até mesmo um negócio simples como a Gyaco, minha empresa de consultoria e treinamento em gestão de produtos e transformação digital, tem dois tipos de clientes: os consumidores finais, que consomem os conteúdos e treinamentos que publico, e as empresas que me contratam para treinamentos in-company e para trabalhos de consultoria para ajudar em suas estratégias digitais.
Esse artigo é mais um trecho do meu mais novo livro “Transformação digital e cultura de produto: Como colocar a tecnologia no centro da estratégia da sua empresa“, que vou também disponibilizar aqui no blog. Até o momento, já publiquei aqui:
Ajudo líderes de produto (CPOs, heads de produtos, CTOs, CEOs, tech founders, heads de transformação digital) a enfrentarem seus desafios e oportunidades de produtos digitais por meio de treinamentos e consultoria em gestão de produtos e transformação digital.
Você trabalha com produtos digitais? Quer saber mais sobre como gerenciar um produto digital para aumentar suas chances de sucesso, resolver os problemas do usuário e atingir os objetivos da empresa? Confira meu pacote de gerenciamento de produto digital com meus 4 livros, onde compartilho o que aprendi durante meus mais de 30 anos de experiência na criação e gerenciamento de produtos digitais. Se preferir, pode comprar os livros individualmente: